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terça-feira, 4 de setembro de 2007

2007.09 em DaMoto nº2
A “garrafa de adrenalina".
100 anos do Tourist Trophy






Ao final da recta da meta chega Nicky Hayden pendurado no travão da frente, enquanto “chuta” as velocidades ao ritmo de uma metralhadora. No seu escape vem Rossi, que depois de dominar a roda traseira que um segundo antes rabeava no ar, roda o punho com uma certeza e uma precisão cirúrgicas, executando um powerslide de proporções dramáticas.Para a maioria dos espectadores, deslumbrados por tamanha demonstração de talento, estes pilotos são os verdadeiros heróis do motociclismo moderno e o Moto GP a mais espectacular das competições. Mas para alguém como Steve Hislop, talvez todos estes malabarismos não pareçam mais excitantes que um jogo de dominó entre reformados.

Nomes como Steve Hislop ou Joey Dunlop são quase desconhecidos da mais moderna geração de seguidores do motociclismo. No entanto, para várias gerações, estes homens são lendas e os seus nomes representam o limite máximo de coragem, rapidez, precisão e, porque não, genuína e inigualável loucura. Eles foram os mais famosos conquistadores da Isle of Man e, apesar de terem sido “apenas” pilotos, são já parte importante da história do “paraíso da velocidade” e representam a época áurea do centenário desafio que é o Tourist Trophy.

A Isle of Man.
A Isle of Man está plantada no mar da Irlanda, a meio caminho entre Inglaterra, Irlanda e Escócia. Apesar de ser uma ilha de apenas 52 quilómetros de extensão, contém todo o tipo de paisagens e de relevos que se podem encontrar nos diversos pontos do Reino Unido. De rectas planas que rasgam prados verdejantes, a troços retorcidos e sinuosos que desafiam as enormes escarpas que formam o pedestal rochoso que eleva a ilha, as estradas de Man oferecem todo o tipo de desafios. Para além de um local de rara beleza, Man é um templo da velocidade. Todos os anos milhares de motociclistas rumam à Ilha seduzidos, não tanto pela paisagem, mas por outro atractivo turísitico: a ausência de limites legais de velocidade. Talvez esta possa parecer uma liberdade demasiado extrema, numa época em que a velocidade é, cada vez mais, vista como um crime. Mas na Isle of Man existe toda uma cultura em torno da velocidade e, consequentemente, respeito por quem se desloca depressa. Talvez seja essa a explicação para o baixo índice de acidentes de viação daquele lugar e para o voluntarismo e boa-vontade de toda a população em torno do Tourist Trophy.

Como tudo começou.
O Tourist Trophy é hoje uma prova mais famosa do que nunca, graças ao simulador que tem transportado as curvas da ilha às salas de estar de meio mundo. Mas a história desta aventura anual tem nada menos do que um século.
Curiosamente, a história do TT começa do outro lado do Atlântico com o nascimento de James, filho de Gordon Bennett, proprietário do New York Herald.
Em 1897 este influente magnata, enviou o seu filho para Paris, com o propósito de liderar a expansão do periódico no velho continente. Chegado a França, o jovem americano cedo se deixou conquistar pelo estilo de vida europeu e os seus interesses viraram-se para outras áreas, nomeadamente o automóvel James Gordon Bennett Junior terá sido um dos primeiros genuínos “petrolhead” numa altura em que a sociedade ainda não tinha percebido o verdadeiro alcance do advento do veículo motorizado. O seu entusiasmo e espírito empreendedor, levaram-no a fundar o Automóvel Clube de França. Mas como qualquer americano, James era um patriota e, portanto, um acérrimo defensor das qualidades da indústria automóvel do seu país. Daí surgiu a ideia de uma taça das nações, com o nome Gordon Bennet Cup, que consistia numa prova de resistência em que cada país se fazia representar por 3 carros de diferentes marcas nacionais. Nas regras desta competição constava que o vencedor de uma edição teria de ser o anfitrião no ano seguinte. Por isso, quando o Clube Automóvel da Inglaterra e Irlanda venceu a competição, deparou-se com um problema: a lei inglesa estabelecia um limíte de velocidade de 30kms/h e proibia qualquer tipo de competição motorizada. A solução, como seria de esperar, estava em rumar à Irlanda.

A Gordon Bennet Cup não se realizaria por muito mais anos, uma vez que o seu fundador voltou os seus interesses para outras áreas, nomeadamente, balões de ar quente. Mas na Isle of Man, o clima de entusiasmo estava lançado e o Clube Automóvel de Inglaterra e Irlanda não quis perder a oportunidade. Daí à criação do Tourist Trophy, seria um pequeno passo e com ele, em 1907, nascia o maior desafio motociclistico de todos os tempos.

A prova.
O formato do Tourist Trophy não encontra paralelo em nenhuma outra competição de motos, mas denúncia as suas origens. A partida é dada individualmente, com 30 segundos de intervalo entre cada concorrente, à semelhança do que acontece em rampas ou ralis de automobilismo. Na realidade, o Tourist Trophy, é como um rali de motos e as semelhanças não terminam na partida. A prova da Isle of Man é a única em que motos de velocidade são guiadas em estrada, entre casas, passeios, campos, muros e valetas. Sem esquecer ganchos apertados, pisos irregulares e até mesmo saltos! Ingredientes que fazem do TT uma verdadeira homenagem à coragem e ao espírito aventureiro que caracterizam os motociclistas.

Os heróis do TT.
Foram muitos os pilotos que ao longo de 100 anos correram e brilharam nas arrepiantes curvas da ilha. Mas de entre todos, o nome que mais se destaca e que mais intimamente está ligado ao TT é o de Joey Dunlop. Numa curta vida de 48 anos, o destemido Irlandês venceu esta prova por 26 vezes. O facto de estas vitórias terem sido divididas pelas mais diversas categorias, diz muito acerca da versatilidade deste piloto que era capaz de, no mesmo dia saltar de uma 125 GP para uma Superbike e vencer categoricamente em ambas as classes. Dunlop pilotou até ao fim da vida e morreu em cima de uma moto numa prova de segunda categoria na Estónia. Mas o facto de nesse mesmo ano ter feito o seu melhor tempo de sempre no TT na categoria F1, aos 48 anos, prova que o piloto ainda teria muito para dar.
Steve Hislop é, tal como Dunlop, uma lenda do TT. Venceu a prova por 11 vezes e ainda foi campeão britânico nas classes 250cc e Superbike. Com um estilo de condução inconfundível, Hislop criou uma legião de fãs que acompanhavam a sua carreira com entusiasmo. Daí que a sua cerimónia fúnebre, em 2002, tenha sido a maior concentração de motos que a Escócia já viu, com motociclistas a chorarem por alguém que nunca conheceram pessoalmente. O seu estilo simples e a sua generosidade para com os seus seguidores, fizeram dele um herói. O facto de ter desafiado a morte em cada curva da Isle of Man e de ter acabado por falecer num acidente de helicóptero, apenas vem reforçar a validade da suas palavras quando dizia que a vida era curta e que valia a pena arriscar tudo em cima de uma moto.
Mas como ele próprio escreveu, os heróis do TT não são só os pilotos. Se hoje ainda é possível manter de pé uma corrida tão complexa de organizar, isso deve-se principalmente à boa vontade e aos voluntários, de dentro e fora da Ilha, que todos os anos se juntam para formar um gigantesco “staff” de 1200 pessoas, entre comissários, médicos e enfermeiros, cronometristas, comentadores, etc.. O governo, as autoridades e os acolhedores habitantes da Isle of Man, são também eles determinantes para manter uma tradição que, seguramente, será impossível de imitar em qualquer outro ponto do mundo e a um século de distância.
Foi também Steve Hislop que uma vez disse que “A adrenalina é a melhor droga do mundo e se alguém a conseguisse engarrafar e vender, faria uma fortuna”. Depois de 100 anos de crescente popularidade, talvez o TT seja a tal garrafa de adrenalina de que falava.