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quarta-feira, 31 de outubro de 2007

2007.10 em DaMoto nº3
A moto como a conhecemos.
Honda CB 750 Four







Qualquer revista de motos, num determinado momento, dedica algumas páginas à Honda CB 750 Four. E há uma forte razão para fazer o óbvio: gratidão.
Com este modelo a Honda não marcou apenas a história da moto. A CB 750 Four redefiniu o futuro da indústria, do motociclista e, como consequência, o nosso. Esta homenagem explica porquê.

Se a CB 750 Four, alguma vez mereceu uma crítica, essa consistia na sua demasiada perfeição. A maior das Honda fazia tão bem tudo aquilo a que se propunha que, pilotá-la, acabava por não ser um desafio. Mas em 1969, criar uma moto de 67cvs demasiado acessível, significava reunir vários factores: um brilhante plano de engenharia, uma excelente avaliação do mercado, um seguro salto tecnológico e um rigorosíssimo controlo de qualidade. Soichiro Honda e Yoshiro Harada (o responsável pelo projecto) conseguiram reunir todas essas condições, marcando aquele que seria o padrão de trabalho da Honda em todas as produções futuras.


Ler o mercado.

Quando imediatamente após a guerra, Soichiro Honda se fechou num barracão de Hamamatsu a aplicar motores em bicicletas, fê-lo por saber que o Japão precisava desesperadamente de meios de transporte, baratos e económicos. O Japão era à época um país em convalescença duma guerra devastadora. O combustível era escasso e as condições económicas tornavam inviável a aquisição de automóveis.
Soichiro, usou primeiramente motores dois tempos excedentes de material de guerra. As 500 primeiras bicicletas motorizadas venderam-se a um ritmo em nada condizente com a sua potência. Soichiro percebeu o que o mercado lhe dizia e lançou-se na produção dos seus próprios motores e mais tarde, quadros.
Esta capacidade de ler o mercado foi igualmente determinante aquando da concepção da CB 750 Four. Em 1966 a Honda tinha como principal arma a CB 450 bicilíndrica. Um modelo em quase tudo superior às suas congéneres britânicas, mas que não impressionava aquele que sempre foi o maior consumidor mundial de motos: a América do Norte.
A CB 450 não era lenta por comparação com a concorrência. Era também fiável e o seu comportamento competente. Afinal, a Honda trazia para a estrada muitos ensinamentos dos seus vários títulos no mundial de motociclismo. Mas, talvez fruto da geografia do país, os norte-americanos sempre quiseram potência à disposição. Ao contrário dos japoneses, estes motociclistas não gostavam de ser obrigados a usar a caixa e altas rotações para tirar o máximo de partido da moto. Para além disso, os americanos estavam mais adaptados a um tipo de condução mais relaxada - como a que proporcionavam as Harley-Davidson – do que a pilotar “race replicas” nervosas e pouco práticas.
Posto isto, Harada teve de interiorizar e aceitar o conceito “maior é melhor”, tão típico naquele lado do mundo. Mas isso não bastava.
Um dos desafios que o mercado americano colocava era a necessidade de altas velocidades de ponta e de cruzeiro. Uma boa super-moto deveria então poder competir com um “muscle-car” e, simultaneamente, permitir longas viagens a ritmos elevados, com bons níveis de conforto e segurança. Objectivos aparentemente difíceis de conciliar.


Os números e os meios.

Harada sabia então que binário, potência e imponência seriam dados da equação que tinha para resolver. Mas restava a dúvida de até onde ir. Foi então que soube, de fonte segura, que a Triumph se preparava para lançar uma moto de 750cc. A “dose” estava, pois, definida.
Porque esta desportiva também pretendia ser uma viajante, a suavidade e o ruído tinham de ser compatíveis com as grandes distâncias. Havia já muito tempo desde que a indústria automóvel tinha definido os quatro cilindros como o mínimo exigível para um funcionamento suave e uma sonoridade agradável. Para além disso o aspecto de tal motor ajudaria a convencer o público de que esta CB era diferente e deveria ser levada a sério.
Basta olharmos para as motos actuais para percebermos o quanto esta escolha foi acertada. Para além de proporcionar uma linearidade invulgar para a época, o motor da CB vibrava muito pouco e tinha um som melodioso, incomparável ao de qualquer concorrente.
Agora que a Honda tinha uma moto capaz de acelerar até aos 100kms/h em 7,5 segundos, faltava decidir como fazê-la abrandar. A Lochkart, uma empresa americana especializada em travões oferecia já, em 1968, um sistema de travão de disco que podia ser instalado numa CB 450 e cujos resultados eram surpreendentes. Harada ficou entusiasmado com a ideia, mas receoso de que o facto de ser uma novidade tecnológica fosse atrasar o programa de desenvolvimento da moto. Inseguro, decidiu questionar o patrão da Honda sobre se deveria adoptar os discos ou apostar num bom sistema de tambores. Soichiro, sempre adepto de novidades e soluções tecnologicamente avançadas respondeu: “É evidente que temos de ter os discos.” E no salão de Tóquio a CB750 Four ostentava orgulhosamente os seus grandes e volumosos discos de travão, com que surpreendeu toda a imprensa antes mesmo de chegar à estrada.


O sucesso e as soluções de produção.

O projecto da CB750 Four foi diferente e vanguardista desde o primeiro esboço. Isto porque todo o processo de fabrico incluía novos métodos e ferramentas no sentido de garantir que, apesar de pioneiro, este modelo não teria quaisquer falhas. Então, pela primeira vez, foram utilizados meios informáticos no desenho e concepção de uma moto, o que permitiu agilizar toda a fase de projecção.
Porque tanto o desenvolvimento como o fabrico, envolveriam uma grande quantidade de engenheiros e operários, Harada decidiu criar um conjunto de objectivos-base que todos deveriam ter presentes, criando assim uma equipa coesa e informada. Estes 6 objectivos eram os seguintes:

1 - Assegurar a estabilidade a velocidades de cruzeiro elevadas (140 a 160kms/h), permitindo no entanto boa maneabilidade no trânsito.
2 - Oferecer um sistema de travagem altamente fiável e resistente, capaz de suportar frequentes travagens fortes a altas velocidades.
3 - Minimizar vibrações e ruídos de forma a diminuir a fadiga do condutor em longas viagens, criar uma posição de condução confortável e assegurar que princípios ergonómicos são aplicados a todos os instrumentos. Criar instrumentação de uso intuitivo.
4 - Garantir que todos os instrumentos auxiliares como manómetros e luzes fossem suficientemente grandes e funcionais de modo a ajudar o motociclista na condução e assegurar visibilidade perante outros veículos.
5 - Alargar os períodos de revisão, permitir uma fácil manutenção e garantir que todos os componentes têm um longo período de vida.
6 - Criar desenhos originais que sejam fáceis de produzir em massa, através do uso de novos e melhores materiais e tecnologias.

A Honda iniciou então a produção da sua nova máquina em Saitama, numa unidade fabril que se encontrava desactivada. O objectivo era evitar proceder a alterações nas linhas de produção principais, no sentido de as adaptar ao fabrico duma moto completamente nova e cujo sucesso comercial era ainda imprevisível.
Porque a fábrica de Saitama estava pensada para produzir motores bicilindricos, muitas modificações foram necessárias para a adaptar à construção da 750 Four. Os engenheiros da Honda efectuaram inclusive algumas “visitas de estudo” a fábricas de automóveis e tiveram mesmo de recrutar muitos operários das suas fábricas de motores para carros, no sentido de dar resposta às encomendas. Estes reforços, habituados a montar motores de 4 cilindros, receberam instruções especiais no sentido de manejar os motores de maneira a que os blocos não tivessem um único risco no exterior.
À medida que as encomendas aumentavam exponencialmente por todo o globo, a Honda foi subindo a cadência de produção de 5 unidades diárias para 25 e, posteriormente, para 100. A transferência das linhas de fabrico para Suzuka foi, então, inevitável.


De 1969 à eternidade.

Até 1969, provavelmente, não tinha havido outro modelo de moto planeado e concebido de forma tão avançada e cuidada. O resultado deste plano rigorosamente delineado, rebentou como uma bomba no mercado e na indústria das motos.
Pela primeira vez, uma moto potente poderia ser vista como um meio de transporte racional e confortável, em vez de assumir o papel de “brinquedo” furioso, radical, sujo e fumarento. Ao mesmo tempo, a CB tornava a sua performance acessível por ser segura e fácil de guiar, ao contrário das suas rivais da época, como a assustadora Kawasaki KH. À custa dessa acessibilidade, a Honda conquistou mesmo novos motociclistas. Re-misturando o conceito de moto, a CB 750 colocou este universo de performance ao alcance de todos, fazendo mais pela popularidade das duas rodas do que qualquer outro modelo na história.
Muitos motociclistas, mais radicais e destemidos, nunca se deixaram seduzir por esta moto “fácil” e quase aborrecida. Mas mesmo a esse nicho, a CB 750 Four prestou um grande serviço: o de criar uma fórmula e estabelecer um padrão sobre o qual haveriam de ser desenvolvidas milhares e milhares de diferentes propostas, desde radicais RR’s a suaves turísticas.
Mais surpreendente, é o facto da 750 Four ainda estar na moda, como prova a popularidade de modelos como as Hornet, CBF 600, XJR 1300, Z1000 e outras.
No fim de contas, todos continuamos a apreciar a perfeita combinação de pureza, simplicidade, eficiência e beleza da CB 750 Four. Talvez porque, no fundo, esta será para sempre “a moto” e tenhamos de nos contentar com imitações e sucedâneos.

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