Este blogue é um espaço destinado à compilação de textos sobre o mundo motorizado, que vou escrevendo para diferentes meios.
Embora não seja uma actividade que desenvolva em termos profissionais, é algo que me dá muito prazer, que tento fazer cada vez melhor e que tenho gosto em partilhar.
Se desejar ser notificado de cada uma das actualizações mensais, escreva-me para hugosantosreis@gmail.com .

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

2008.02 em Motor Clássico nº 12
O herói sem tempo.
Jaime de Campos


No seu posto de trabalho, entre papéis e números aborrecidos, o contabilista exercitava o poder de cálculo para saber quando podia voltar aos circuitos. Antes de bater os seus rivais, Jaime de Campos tinha, muitas vezes, de vencer a crueldade das contas.
Esta é a história de um irreverente e destemido herói nortenho, que apaixonou os adeptos de então.


A competição é, para alguns um “negócio de família”. Para outros, um interessante hobby. Há ainda aqueles para quem competir é uma obsessão incontornável, indissociável da sua personalidade e que se exprime das mais diversas formas. O “sportman” nortenho Jaime de Campos (como se lhe referiam os jornais de então) era um destes homens. Daí que o seu nome se tenha tornado conhecido ainda antes dos seus feitos sobre rodas. Aliás, o seu porte delicado parecia enquadrar-se muito mais na sua outra paixão desportiva: o atletismo.
Esforçado e com boa resistência, Jaime cedo se fez um “pedestrianista” destacado do F.C. do Porto, estreando-se em 1921 na “3ª Milha do Jornal de Notícias” com um 3º lugar. Ao longo desse mesmo ano, o atleta tornou bem evidente a sua fibra de campeão ao vencer a “Légua do Janeiro”, seguindo-se um 3º lugar no “Festival do Benfica”, um 2º posto no “Miriametro da Foz do Douro” e mais 4 vitórias na “Légua de Braga”, nos “7500 metros do Racing Clube do Porto”, no festival “Vilanovense-Nun’Álvares” e no “Torneio do Leixões”.
Ainda muito jovem e sem ninguém que lhe patrocinasse outras actividades desportivas, o atleta teria de esperar vários anos até se tornar motociclista.

Um arranque auspicioso.
Foi em1927 que, Jaime de Campos experimentou as duas rodas. O “Circuito de Aveiro” foi a sua prova de estreia e em que logo arrecadou, sem cerimónias, um segundo lugar. Mas, apesar deste início promissor, o piloto ainda não dispunha de recursos que lhe permitissem assiduidade nos circuitos.
Foi inicialmente como funcionário do Tribunal de São João Novo e mais tarde como contabilista, que Jaime foi procurando reunir condições financeiras que lhe permitissem conciliar a posição de chefe de família com as suas ambições desportivas.
É, então, em 1932 que o portuense faz a primeira temporada completa. A sua vontade de vencer ficou bem expressa com três triunfos consecutivos em outras tantas importantes provas: Boavista, Boca do Inferno e Estoril. Nesse ano, apenas não venceu nas provas onde desistiu por avaria. Primeiro no Circuito do Campo Grande e, em seguida, no Circuito de Aveiro, onde ainda firmou a volta mais rápida à respeitável média de 105 kms/h.
O ano de 1934 ficou marcado pela realização do primeiro Circuito de Vila Real em motos. Jaime de Campos compareceu aos comandos de uma já ultrapassada Royal Enfield pelo que, ainda que inscrito na categoria menos competitiva, mais não fez do que chegar ao fim. Na classe Sport, apenas ele e Augusto de Almeida lograram concluir a prova, com este último a passear a superioridade da sua potente Rudge. A categoria Corrida seria vencida pelo famoso Alexandre Black, aos comandos de uma Norton 500. Esta vitória era um indicador da superioridade que a Norton começava a esboçar. E, para reforçar a sua competitividade, a marca britânica passou a fazer-se representar oficialmente em vários campeonatos nacionais, incluindo o Português. Nessa altura, o carisma e a tenacidade que Jaime de Campos reunia, terão sido decisivos para conquistar a privilegiada posição de piloto oficial da Norton em Portugal.
Com esta nova premissa, veio um grande ímpeto no seu percurso. Em 1935 vence o Campeonato de Portugal disputado no Porto. No ano seguinte, volta a Vila Real com toda a garra, mas uma avaria na sua Norton 500 motiva a desistência. A vingança sobre a má sorte não tardou e, em 1937, vence à geral.


Os amigos, os adversários e os desgostos.
A competição proporcionou a Jaime de Campos muito mais do que a glória. Ao longo do seu percurso, o piloto conquistou tantos troféus como amigos, alguns deles seus fervorosos adversários. Foi por essa razão que o ano de 1938 marcou de forma profunda a sua vida e a sua carreira desportiva. Para esta época estava agendada a estreia da prova da “Avenida Marechal Gomes da Costa”. Como sempre, Jaime travou, desde os treinos, um dos seus duelos com o grande amigo e companheiro de equipa Henrique Emiliano. Partindo do primeiro lugar, Henrique conduz determinado, sabendo que o seu adversário não lhe daria tréguas. Mas inesperadamente, à décima volta, a moto de Emiliano descontrola-se seguindo de encontro ao passeio e provocando uma violenta queda. Jaime, que seguia a escassos metros do líder, não consegue evitar o choque com o seu corpo inerte. A caminho do hospital, Emiliano acaba por perder a vida.
A triste prova seria vencida por António Pinto, piloto lisboeta e filho desse outro bem sucedido motociclista, Inocêncio Pinto. Dispondo sempre de condições económicas e técnicas superiores, António tornou-se no novo adversário directo de Jaime de Campos. Entre os dois pilotos foi alimentada durante anos uma rivalidade muito ao género de um Porto-Benfica motociclistico, ao qual não faltaram sequer os episódios mais polémicos. Um deles imortalizado por uma carta aberta de António Pinto ao jornal “Volante” em 1950, em que acusa o portuense de usar injustamente a braçadeira de campeão nacional relativa à época de 1939 e que, na sua opinião, lhe pertencia.

O regresso pós-guerra e a internacionalização.
O ano de 1948 trazia de volta o motociclismo, após longa pausa motivada pela 2ª grande guerra. Durante este hiato, Jaime dedicara-se ao negócio do pai e à, já numerosa, família. Pai de 7 filhos, o piloto contava agora 45 anos. Mas nem a idade, nem as responsabilidades, pareciam ser obstáculo à sua competitividade.
1948 poderia ter sido o seu ano de internacionalização. Entusiasmado com o convite para alinhar no Grande Prémio de Madrid, Jaime sofreu enorme desalento ao não consegui ter a sua moto pronta à hora da largada. Seria só no ano seguinte, na “Prova dos Ases”, que o português viria a medir forças com os melhores internacionais. Apesar de levar para Barcelona uma Norton completamente obsoleta e de ter de enfrentar um circuito desconhecido e muito técnico, o veterano não deixou de impressionar. À 22ª volta ao longo circuito, Jaime de Campos ocupava a 4ª posição da geral, à frente de vários nomes de peso do motociclismo europeu. Foi então que a fiabilidade da sua máquina voltou a ser protagonista, com um derrame de óleo na tampa da distribuição a forçar a desistência. Episódio semelhante viria a suceder na sua segunda participação na prova de Madrid onde, uma vez mais, Jaime de Campos evidenciava um andamento notável.

As injustiças e a suspensão.
Um dos aspectos marcantes na personalidade de Campos era a sua frontalidade e inconformismo. O piloto nunca hesitava em criticar quem quer que fosse e em defender seus princípios.
A 30 de Junho 1949 que “O Norte Desportivo” publicou uma das mais polémicas entrevistas da história do motociclismo, em que o piloto do Porto acusava frontalmente a direcção do Moto Clube de Portugal de sonegar uma parte dos prémios de corrida. Num incontido desabafo, Jaime indicou nomes e apresentou testemunhas, revelando inclusive ter sido ameaçado com a pena de erradiação caso insistisse em “agitar as águas”. E assim aconteceu. Após a publicação destes factos e, para indignação dos entusiastas do Norte, o seu herói desportivo seria afastado das pistas. No entanto, em 1950 Jaime de Campos vê a sua penalização levantada e retorna ao motociclismo com renovado entusiasmo.

As dificuldades e a solidariedade popular.
Em 1949, Jaime de Campos tinha vencido uma outra vez o Circuito de Vila Real. Mas em 1950, nem a sua determinação e coragem pareciam argumentos suficientes para se bater com António Pinto e outro pilotos bem equipados.
Jaime era de tal forma seguro e apaixonado pela competição que - contam as suas filhas – chegava a cometer algumas loucuras, a contar com o prémio da corrida. A mais comum delas consistia em vender ou penhorar a mobília de sua casa para poder adquirir motos ou peças, prometendo à esposa renovar a decoração com o valor dos prémios. Era certo que, na maioria das vezes, o chefe de família alcançava resultados que lhe permitiam cumprir o prometido. Vencer à geral era, apesar disso, cada vez menos comum. Os jornais de então comentavam que os 46 anos do motociclista não se notavam, mas que a sua velha Norton não lhe permitia grandes ambições.
É na sequência destes factos que se dá um episódio revelador do quanto Jaime de Campos apaixonava o público nortenho: o jornal “O Norte Desportivo” lança uma subscrição para a compra de uma nova moto para o piloto, a qual teve pronta adesão dos seus leitores.

A “corrida” final.
Jaime de Campos vivia intensamente a sua vida privada, dividido entre o convívio familiar e a sua paixão pelas motos. Mas no dia 9 de Setembro de 1950, as duas paixões cruzaram-se de forma macabra. Num calmo domingo que contrastava com os habituais fins-de-semana prova, Jaime almoçou animadamente entre família e amigos. Após a refeição, parte para um pequeno passeio na mota emprestada pelo seu amigo e piloto Fernando Moreira da Silva. Por ironia do destino, seria na estrada da Circunvalação, parte integrante do Circuito da Boavista e que tantas vezes percorreu nos limites, que perderia o controlo da moto. Embatendo violentamente numa árvore, o piloto morreu de imediato.
A cerimónia fúnebre foi a prova final de que, no curto tempo da sua carreira, Jaime de Campos tinha conquistado um estatuto de herói. Milhares de pessoas acompanharam emocionadas a derradeira corrida do motociclista, num funeral que ainda hoje é recordado como um dos mais concorridos de que há memória na cidade do Porto.

A memória.
O nome de Jaime de Campos já só é recordado por alguns dos mais velhos entusiastas da modalidade. Mas numa época em que o desporto motorizado é cada vez menos exigente em termos de bravura, nunca é demais recordar um dos mais destemidos pilotos da época em que os travões de tambor e os capacetes abertos eram as únicas defesas disponíveis para enfrentar os perigosos circuitos citadinos.
O tempo foi curto para o talento de Jaime de Campos, mas a memória dos seus feitos poderá ainda perdurar por gerações.

Sem comentários: