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segunda-feira, 2 de julho de 2007

2007.07 no nº1 da revista DaMoto
Doce Sepukku.
Kawasaki KH 500 Mach III H1



























Quando percebia que não podia sai vitorioso de uma batalha, o Samurai cometia o sepukku. Um acto heróico que consistia em cortar o seu próprio abdómen, para evitar a humilhação de ser vencido pelo inimigo.
Em 1969, a KH 500 Mach III dava origem a uma nova forma de sepukku, sobre rodas. Desafiar o tricilindrico era um acto heróico, mesmo quando isso significava a desgraça do guerreiro.

Se a tecnologia dos motores a 2 tempos se tivesse mantido actual e competitiva, a KH poderia bem ser recordada como a mãe das “superbike”. O certo é que, aquando do lançamento, nenhuma outra moto sequer se aproximava dos seus níveis de performance e irreverência.
Para a Kawasaki, uma indústria mais voltada para os caminhos-de-ferro e aviação, as motos eram, até aos anos 60, uma simples extensão de marca destinada a criar notoriedade. Para além de produzir pequenas utilitárias, a empresa limitava-se a copiar os mais famosos modelos britânicos. No entanto, o crescente optimismo económico que então se fazia sentir, criou um apetite por veículos rápidos e excêntricos, tanto a oriente, como a ocidente. As motos eram agora um negócio mais apelativo e a Kawasaki, percebendo a oportunidade, começava a desenvolver modelos cada vez mais impressionantes. Em 1966 foi apresentada a W1 com motor 4 tempos de 650cc que era, na época, a moto japonesa de maior cilindrada. No ano seguinte era lançada a A1 - mais conhecida como Samurai - equipada com um pequeno motor 2 tempos de apenas 250cc, mas com uma potência específica de 80cvs/ltr. Motos inovadoras e tecnicamente interessantes que, no entanto, não eram suficientes para conquistar o mercado mais desejado e rentável: a América do Norte.
Obcecados por potências e velocidades máximas cada vez mais elevadas, os americanos recebiam com entusiasmo as mais radicais motos japonesas. Nesse contexto, a Kawasaki precisava de um modelo que lhe permitisse destacar-se claramente da concorrência. Foi então no Verão de 67, que arrancou um projecto altamente secreto, denominado N100. O plano consistia em desenvolver uma moto capaz de atingir performances nunca antes vistas num modelo de estrada.
A aposta da marca neste projecto era tão forte, que duas soluções mecânicas foram desenvolvidas em simultâneo, por diferentes equipas. Um bicilindrico com válvulas rotativas e um original motor de 3 cilindros. Ambos a 2 tempos e com 500cc de capacidade.
O “triple” – expressão que se tornou a alcunha destes motores – tinha o carácter inovador e a imponência que convinham a um projecto tão ambicioso. No mercado americano não bastava ser potente: era preciso parecer. Daí que a simpatia dos engenheiros tenha recaído nesta solução que, no entanto, representava um maior desafio técnico.
Um dos primeiros obstáculos com que os engenheiros se depararam, foi a dificuldade em refrigerar o segundo cilindro, que via o seu ar desviado pela roda da frente e pelos braços de suspensão. Depois de estudadas diferentes disposições e diferentes tipos de aletas de refrigeração, tornou-se viável a colocação dos 3 cilindros em linha. Estava assim criada a imagem de marca das KH.
Outro problema que o “triple” apresentava era o “encharcar” de velas a baixas rotações. Para o solucionar, a Kawasaki socorreu-se de uma tecnologia que havia sido utilizada nas suas motos de competição: o CDI (Capacitor Discharge Ignition). Uma tecnologia que permite não só uma optimização da combustão em baixas rotações, como um aumento da capacidade de resposta do motor. Um sistema que havia de se tornar comum mas que, na época, era um exemplo de quão avançada era esta moto.
Pela sua originalidade, este motor não foi simples de conceber. Mas o resultado produzido pelo esforço dos engenheiros era nada menos do que espectacular: a KH 500 Mach III H1 era uma moto de estrada com uma potência específica de 120cvs/ltr, capaz de atingir os 100kms/h em menos de 4 segundos e apta a atingir facilmente os 190kms/h. Com mais 10cvs de potência do que a maioria das motos britânicas de competição contemporâneas, a KH era, oficialmente, a moto de estrada mais rápida do mundo. E sendo uma máquina capaz de acelerar mais rápido que os idolatrados Corvettes, Mustangs e Hemicudas Roadrunners conseguiu, desde logo, impressionar os americanos.
Obviamente, estes níveis de performance fizeram emergir novas questões logo nos primeiros ensaios. Entre elas, a resistência dos pneus às altas temperaturas provocadas pela velocidade de ponta da Mach III. A equipa técnica, em parceria com a Dunlop, criou então os revolucionários K77. Pneus específicos para a KH, muito semelhantes aos de competição.
Aliás, toda a ciclística teve de ser pensada em função dos castigos impostos pela mecânica. Embora a Kawasaki tivesse experimentado o quadro de uma simples secção tubular - solução mais comum na época – este não se revelava capaz de lidar com a brutalidade das acelerações. Do estirador saiu, então, um quadro encimado por duas traves paralelas, que se estendiam desde a mesa da direcção até ao final do assento, oferecendo uma rigidez superior, ainda que não absoluta.
A suspensão era outro dos aspectos inovadores desta Kawasaki. A KH foi a primeira moto de alta cilindrada a ser equipada com uma suspensão telescópica em que as molas eram montadas internamente, enquanto a traseira estava equipada com um sistema de suspensão regulável, com 3 diferentes níveis de amortecimento. Para minimizar as vibrações, a H1 vinha também equipada com um amortecedor de direcção, que seria abandonado nas versões seguintes.
O design foi todo criado nos Estados Unidos, à excepção dos característicos escapes. Estes foram uma imposição da equipa técnica, devido a questões de performance. Branca com uma lista azul a atravessar um depósito marcado por concavidades “esculpidas” nas laterais e com um guiador mais adequado a uma utilização turística, a primeira KH tinha um aspecto deveras original. Ao longo das versões seguintes, a posição de condução acabou por tornar-se mais desportiva, o depósito adquiriu um formato mais estreito e simples e os esquemas de cores tornaram-se mais elaborados.
Assim que os primeiros exemplares chegaram às estradas, a KH tornou-se imediatamente alvo de polémica. O seu magnífico aspecto, um motor que parecia não ter limites e o furioso grito metálico, tornavam-na unanimemente desejada e excitante. No entanto, a sua condução em curva e a altas velocidades, era de tal forma exigente que poucos eram os que tinham coragem de extrair todo o potencial do motor. E os que se atreviam voltavam sempre com histórias arrepiantes para contar.
A partir dos 160 kms/h o varejamento da direcção era notório, apesar do amortecedor de direcção. Em curva, o peso considerável do conjunto, associado a um quadro um pouco aquém do que se exige de uma super-moto, deram-lhe a fama de uma máquina imprevisível e temperamental.
Curiosamente, os primeiros ensaios à Mach III H1 feitos em 1969, as revistas Cycle, Cycle World e Cycle Guide teciam rasgados elogios ao seu comportamento, apesar do cepticismo inicial. As únicas críticas que se repetiam iam para as vibrações e para a fadiga dos travões, dois sintomas que se faziam sentir a partir dos 160 kms/h. Mas à época, como os jornalistas realçavam, ultrapassar esta marca significava entrar no território das motos de competição. Algo que a KH não pretendia ser (muito embora as suas variantes de competição tenham obtido resultados assinaláveis, como o segundo lugar de Ginger Molloy no campeonato de 500cc, atrás de Giacomo Agostini).
Ao guiar uma KH hoje, torna-se evidente que ela não é exactamente uma ferramenta de precisão. Mesmo na versão H2, com travão de disco, o poder de travagem é desencorajador, a direcção é vaga e as únicas curvas que se conseguem enfrentar com prazer são as mais abertas e suaves. Só a resposta do motor parece contemporânea: pronta, linear e vibrante. Muito vibrante! Mas estes são os padrões actuais. Em 1969 a KH estava a pisar terrenos de performance nunca antes explorados e cujas exigências estavam ainda a ser descobertas. Pedir que o fizesse com perfeição, talvez fosse injusto. A menos que os seus criadores tivessem tido a oportunidade de provar uma outra receita de super-moto, que estava a ser cozinhada em simultâneo e a alguns quilómetros de distância: a Honda CB 750 Four.
Em todo o caso, foi com a KH que a Kawasaki reservou um lugar de destaque na história das “superbikes”. Bem na génese do conceito e em grande estilo.
Talvez a reputação de “widowmaker” – alcunha que lhe deram os americanos – tenha sido um desagradável efeito secundário da sua vanguarda. Por estar à frente no seu tempo, a KH foi constantemente comparada a motos mais modernas ou menos atrevidas. E se nos anos 60 a mota era um símbolo de rebeldia, esta era o equivalente motorizado a James Dean. Ambiciosa e inconsequente, a KH não era perfeita. Mas é o carácter, não a competência, que faz as grandes lendas.



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